Professor José Pereira – Meio século a serviço da arbitragem

Ele não ostenta medalhas de ouro nem títulos em competições, mas, perto de completar 89 anos, o judoca José Pereira pode considerar-se um campeão.

A carreira de atleta de José Pereira, coordenador técnico da arbitragem nacional da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), não foi muito gloriosa, mas cheia de altos e baixos, iniciada ainda nos tempos da hegemonia japonesa. Começou tarde para os padrões atuais, mas teve oportunidade de treinar com atletas de altíssimo nível e se tornou faixa preta aos 42 anos. Foi então que descobriu a arbitragem.

Como árbitro, participou de numerosas competições estaduais, nacionais, sul-americanas, pan-americanas e mundiais. Hoje, com 63 anos de experiência na modalidade, Pereira tem muita história para contar. Pretende até lançar um livro – “quando a preguiça deixar” – sobre a sua vida e a história do judô no Rio de Janeiro.

“Minha vida é 70% judô”, confessa Pereira. “O restante são estudos a respeito do esporte propriamente dito. Acompanho grandes competições de vários esportes, nas quais analiso a arbitragem para elaborar minhas considerações. Por isso, quando sugiro alterações, as levo até para os responsáveis pela arbitragem mundial. Aceitem ou não, eu sigo buscando fazer com que o judô seja cada vez mais dinâmico e de compreensão mais fácil para os leigos.”

Paulo Wanderley Teixeira, presidente (CBJ), trabalha com José Pereira na gestão nacional da arbitragem há 16 anos, e não tem dúvida nenhuma de que é o homem certo para o cargo. “Ele é uma pessoa de muita credibilidade, um estudioso no assunto, não existe ninguém melhor em sua área.” Entre outras qualidades, destaca a honestidade, a imparcialidade, a postura, o cumprimento de horários e a conduta profissional no exercício de seu trabalho.

“Ele vai deixar um legado gigantesco para toda a comunidade do judô”, prossegue Paulo Wanderley, “principalmente por ter mostrado que arbitragem é coisa muito séria e deve ser estudada no dia a dia; não basta fazer uma clínica ou um curso de arbitragem e achar que está pronto.”

Conheça nesta entrevista quem é José Pereira, na visão sempre bem humorada dele mesmo.

Como começou nos tatamis?

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, aos 21 anos, como um bom nordestino buscava o Eldorado. Quem queria trabalhar e ganhar dinheiro ia para São Paulo, mas como eu jogava futebol e gostava de dançar, cantar e curtir, vim para o Rio e ainda fui morar perto da Lapa – resumindo, sopa no mel. Conheci um barbeiro metido a forte que estava fazendo jiu-jitsu e dizia que apenas colocando o dedo no peito de alguém podia derrubá-lo. Como eu tinha levado uma surra numa briga de rua, resolvi aprender aquela luta. Comecei com um professor chamado Almir, cuja academia só tinha alunos expulsos das outras. Era o tempo da porrada mesmo, e eu ali aprendi ser casca grossa. Só percebi que havia alguma coisa errada quando apareceu um francês chamado Marcel George Désert, que veio da França e já praticava o judô. No chão eu o vencia facilmente, mas em pé ele me jogava e eu perdia. Senti então que o judô era menos agressivo, com regras que o jiu-jitsu não tinha. Comecei a aprender judô com aquele francês aos 22 anos, em 1952, quando ele se tornou professor na mesma academia.

Os tatamis já eram de palha?

Era feito de uma coisa de que poucas pessoas ouviram falar. Forrávamos o dojô com bagaço da cana seca e cobríamos com uma lona. Fico triste por não ter mais 20 anos para competir nestes tatamis lindos, sintéticos, limpos e antialérgicos.

Como se formou e graduou no judô?

Sou professor kodansha 8º dan, e como profissional sou autodidata em tudo. Várias restrições na minha vida me levaram a isso, sendo a primeira minha preguiça. Não quis estudar quando podia, e quando quis não tinha como arcar com as despesas.

Quais foram as mudanças importantes no judô desde aquela época?

Quando o judô chegou aqui, era muito empírico. Veio com os japoneses, na maioria lavradores que vinham plantar pimenta e começaram a ensinar a luta, como o Takeo Yano, que morava na Baixada Fluminense. Naquela época a técnica era mais refinada porque os japoneses eram baixos e magros. E eles diziam que o pequeno vence o forte. Eu respondia que não: com a mesma técnica e o mesmo conhecimento, mas pesando 80 quilos, eu vou ganhar de um adversário mais leve. E eles insistiam que não. Quando Anton Gessink chegou ao Japão com seus 1,98 m de altura e 130 kg, e ganhou do próprio mestre dele, concluíram que era preciso dividir os lutadores por peso. Foi então que o judô deixou de ser absoluto e criou as categorias leve, meio-pesado e pesado. Mesmo assim não deu certo, e aí chegaram aos oito pesos, que particularmente acho exagero, mas pelo menos melhorou. Seguindo com as grandes mudanças, além dos tatamis, há o judogi oficial, muito bonito, dá vontade até de se casar com ele. Como não vou me casar mais, me enterrem com ele. O meu primeiro kimono era de saco de farinha de trigo e meu back number nas costas era a marca dela.

E quanto às regras?

As regras também foram mudando ao longo deste tempo, e às vezes chegaram a ser um tanto ou quanto absurdas. Por exemplo, numa época, uma saída de área do atleta era punida com um keikoku, equivalente a um wazari. E muitas vezes esse pisar fora não era para fugir, mas para se defender de um empurrão do adversário. Quem aplicava a punição era o árbitro do centro, geralmente mais graduado que os laterais. Cansei de ver luta com arbitro central 5º grau e os laterais 1º ou 2º grau, que não eram ouvidos. Não podiam contestar o sensei. Em 2007, no mundial disputado no Brasil, disse a Juan Carlos Barcos, diretor de arbitragem da FIJ que dirige até hoje a federação espanhola, que era preciso mudar aquela questão. Isso ocorreu justamente durante uma luta na área central, quando os árbitros não conseguiam se entender. Eu sugeri que a saída de área, em qualquer circunstância, fosse punida com shidô ou não fosse punida. Eles ainda não fizeram isso, mas um dia vão fazer.

Quais eram as principais escolas do Rio de Janeiro?

Naquela época eram as escolas do Augusto de Oliveira Cordeiro, que posteriormente foi presidente da CBJ, a do Rodolfo Hermanny e a do George Mehdi.

E os principais professores em São Paulo?

Ryuzo Ogawa, que era muito rígido; Yasuichi Ono, mais eclético, que ensinava tudo na academia dele; TokuoTerazaki, em Mogi das Cruzes; Seisetsu Fukaia, responsável pelo judô do Clube Pinheiros; Katsutoshi Naito, que exerceu grande comando sobre os judocas da colônia japonesa; e Sobei Tani, da Associação de Judô Jaraguá, de onde saíram grandes judocas como Minoro Ito, Nobuyuki Suzuki, Seinozuki Kumitaki e o lendário Lhofei Shiozawa.

Imaginava que o judô seria o que é hoje?

Eu particularmente nunca pensei, porque eu achava o judô um esporte fechado – e era porque os japoneses não abriam o jogo. Se gostassem de alguém, mostravam a técnica, mas não falavam. Se não gostassem, não mostravam nada.

Quais foram as suas principais ações visando ao crescimento do judô?

Fui convidado pela TV Tupi para fazer um programa que ensinasse judô, ginástica e defesa pessoal – de graça, para preencher espaço na grade de horários da antiga emissora. Eu sempre tentava ir além, levava professores de judô, jiu-jitsu e karatê com o intuito de divulgar o esporte e a educação física. Eu era apenas sho-dan na época. Foi naquele período que passei a ensinar na academia Adônis, onde comecei a divulgar o judô para todo o Norte do Rio de Janeiro, pois a modalidade se concentrava na Zona Sul, entre a elite. Pode ter certeza de que com aquele programa levamos o judô para centenas de milhares de lares.

Quando iniciou a atividade na arbitragem?

Fiz meu curso de arbitragem em 1970, e quando me dei conta estava atuando como auxiliar numa luta do meu filho. De repente ele aplicou um uchi-mata no oponente e eu caí da cadeira, dei um de-ashi-barai em mim mesmo. Ou seja, eu estava torcendo. Em função daquele absurdo, mais tarde criei a regra que impede a atuação de parentes. Havia regras que não existem mais. Por exemplo: quando queria que a luta parasse, o árbitro dizia “jikan”, que significa tempo, e mostrava o relógio; quando os atletas saíam da área o árbitro dizia “sonamama” (não se movam) e os dois auxiliares se juntavam ao central para arrastar os dois atletas até o centro da área. Imaginem se lutassem dois atletas tipo Baby e os árbitros tivessem o tamanho do Laedson Godoy… E a marcação de área de chamada naquela época não tinha zona de perigo, apenas uma fitinha que assinalava fora ou dentro. Houve uma evolução incrível, e sempre dei meus palpites. O paulista Carlos Catalano Calleja, quando foi diretor de arbitragem nacional dizia que eu era um árbitro de futuro. Ele foi o grande mestre da arbitragem de todos os tempos d por muitos anos ocupou o cargo de diretor de arbitragem da Federação Internacional de Judô – FIJ. Outros vieram, mas nenhum igual. Eu tentei substituí-lo criando coisas, como os cartões amarelo e vermelho que criei no meeting do Rio de Janeiro. A função era diferente: servia para punir a equipe que se comportasse mal no banco ou xingasse os adversários. Quem estivesse lutando sofria um koká. Eu gostaria que isso tivesse ido em frente. Fui eu que determinei que os árbitros entrassem todos ao mesmo tempo e começassem as lutas simultaneamente, regra que posteriormente a FIJ adotou.

A FPJ foi fundada em 1958 e a CBJ, em 1969. O que isso acrescentou ao desenvolvimento do judô?

São Paulo sempre esteve à frente em todos os sentidos, mas foi a Associação de Judô Budokan, e não a federação, que mais fez pela evolução da modalidade. Os conceitos da Budokan, mais antiga, contribuíram decisivamente para implantar no Brasil a disciplina que até hoje persiste. A Budokan foi a maior escola de judô do Brasil e das Américas de todos os tempos.

Os praticantes ainda mantêm uma disciplina rígida?

Ultimamente o judô está sendo muito banalizado. Muitas vezes um judoca sho-dan trata um kodansha de igual para igual. E a culpa é do próprio kodansha, que não se faz respeitar. Eu, por exemplo, sou muito brincalhão, mas nunca um atleta se dirigiu a mim desrespeitosamente. Não posso participar das coisas que ele faz na sua vida particular, se quiser manter o respeito dele.

Como aconteciam as graduações antigamente?

Naquela época o judoca se graduava de qualquer jeito, até por conta própria. Alguém resolvia ensinar judô porque já sabia fazer o o-soto-gari e abria uma academia. Então comprava uma faixa preta e colocava na cintura. Outros se formavam porque um professor fraco lhes dava a faixa preta: tinha medo de perder para um aluno ainda faixa marrom. Mas havia academias de altíssimo nível, principalmente em São Paulo, que levavam a graduação a sério. Como exemplo cito os senseis Suga, Shinohara, Naito, Kawakami, Terazaki, Yanagmori, Yamamoto, Okano, Barbé, Saito, Nakano e Kurachi, entre outros. Mas no Rio viviam professores, japoneses inclusive, que davam faixas pretas à toa, distribuíam certificados escritos em japonês, que ninguém entendia. O cara recebia aquilo, ficava todo alegre, pendurava na parede e se achava faixa preta.

Quando a CBJ foi montada no Rio, o Augusto Cordeiro conseguiu alavancar o judô?

O Cordeiro, como foi da Budokan e era um cara sério, verificou que existia um monte de faixas pretas picaretas e para não desmoralizar a modalidade agiu discretamente. Chamou todo mundo, inclusive os que possuíam certificados pela confederação de pugilismo, que não tinha competência para isso. Ele era muito rígido e tinha o histórico de todo mundo. Então, chegava para um judoca que era go-dan e dizia: “Daqui por diante você será mi-dan”. Se o cara não aceitasse, perdia tudo mesmo. Foi uma atitude que gerou muita polêmica na época, mas moralizou o judô e se espalhou pelo Brasil todo.

Como você se desenvolveu no judô?

Em 1970 fui transferido pela empresa em que trabalhava para Salvador. Eu era segundo dan, e chegando lá conheci o Short, o Serrinha e outros, que eram garotos, e eu derrubava todo mundo, menos o Osvaldo Simões (o Boneca). Me achava um bom judoca, até o dia em que apareceu um cidadão 14 anos mais novo que eu. Tinha 42 e ele, 28. Seu nome era Lhofei Shiozawa. Na época eu corria dez quilômetros por dia e fazia supino com 110 quilos, era fisicamente preparado e, além de tudo, muito bom de chão. Foi um aluno meu que falou da chegada de “um cara muito bom” a Salvador. Quando resolvi conhecer o novo judoca cheguei abafando – eu estava muito bem de vida e dirigia um carrão. Quando entrei no pequeno dojô, me deparei com um japonês baixinho, com um cabeção que mais parecia um jerimum. Me apresentei e fui me trocar para fazer um randori. Mas, voltando ao treino, cheguei todo seguro, esnobe e cheio de marra no centro do dojô, e quando fui pegar na manga dele, ele pegou na minha e me deu um de-ashi-barai e despenquei feito uma jaca. Até hoje não sei em que perna ele entrou. Eu jamais havia visto nada parecido e me perguntava: o que é isso? Voltei prevenido, peguei na manga dele, mas caí de novo; e pior, nem sei com qual golpe ele entrou. Resumindo, em poucos minutos ele fez o gokio completo, e tudo de ashi (pernas). Eu não compreendia por que estava caindo tanto, até perceber que ele era canhoto. Aí concluí que ou eu parava de tentar ficar em pé ou ia morrer. Pedi para parar, sentei-me no chão, quase morrendo, suando frio e ofegante. Ele olhou para mim e disse: “Amigo, você está podre fisicamente”. Logo eu, que me achava o máximo? Vesti a camiseta e fui embora. Mas aquilo ficou na minha cabeça. Toda noite ele aparecia nos meus sonhos, e eu pensei até em desistir do judô. O mais engraçado é que no Rio eu já tinha escutado falar dele, mas do alto de minha vaidade e egocentrismo achava que tudo era mentira, uma lenda.

Mas não desistiu, né?

Quando resolvi voltar lá, aquele baixinho sarcástico disparou: “Você desapareceu, o que aconteceu?” Aí eu resolvi baixar minha bola e treinei com ele durante oito anos. Foi quando aprendi de fato alguma coisinha de judô, principalmente sobre ashi, que eu conhecia, mas sem a precisão e a rapidez dele. Aos poucos fui incorporando e aperfeiçoando novos golpes e passei a ser cotado para ensinar na academia dele. Ele não tinha muita habilidade como professor; lutava muito bem, mas na hora de transmitir o que sabia não era suficientemente bom.

Não saber ensinar é uma peculiaridade dos grandes atletas?

Acho que sim. Ele era muito ruim também como árbitro, eu disse para ele desistir. Em 1972 o Cordeiro passou por lá divulgando a Confederação Brasileira de Judô e em Salvador não se faziam exames para faixa preta sho-dan com o nage-no-kata, que a CBJ e São Paulo já haviam adotado. Resolvi fazer exame para sho-dan com o nage-no-kata, e o Kitami, de Sergipe, o Yoshida, da Bahia, e o Shiozawa, me examinaram. E passei. Eu já era ni-dan, mas decidi baixar de grau por conta própria.

Explique a mudança do nome da Associação de Judô da Bahia.

Essa associação foi fundada por um tenente do Exército que posteriormente se mudou para o Rio Grande do Sul, deixando a academia para o Lhofei. Foi por esse motivo que em 1971 sugeri a troca de nome, pois ele acabou incorporando a escola que fez inúmeros campeões no Estado da Bahia.

Você disse que o Lhofei Shiozawa passou o carro sobre você e ainda deu ré. Doeu muito?

Doeu no ego, porque no resto eu sempre fui um excelente uke.

Como foi a sua trajetória nas competições?

Neste período na Bahia competi por vários anos e cheguei a ser vice-campeão do Troféu Tiradentes. Jogava todo mundo, mas quando encarava o Shiozawa, meu judô ficava pequenininho. Ninguém ganhava dele. Mas foi no convívio com o Lhofei que aprimorei meu judô. Mesmo sendo baixinho foi o único judoca que venceu o Ishii. Quando vivia em Salvador também aprendi muito com o sensei Yoshida que, mesmo tendo se acidentado, ficando quase paraplégico, me passou muita orientação e conhecimento. Foi na Bahia que aprimorei, diversifiquei e enriqueci meu conhecimento técnico.

O que atrapalha mais: atletas e técnicos que desconhecem as regras ou árbitros que não conhecem judô?

As duas coisas. O mais comum é atletas e técnicos desconhecerem as regras, mas existe ainda uma parcela significativa de árbitros que não sabem judô. Na verdade, até hoje esta é a pedra no sapato de alguns árbitros.

Quais são as características fundamentais de um bom árbitro?

Primeiro, ser honesto consigo mesmo, que é o mais difícil. Segundo, fazer seu trabalho com amor porque tudo que é feito com amor tem mais qualidade. Por último, nunca se cansar de estudar para melhorar cada vez mais sua performance. Isto se aplica também, a um judoca na acepção da palavra.

“Após os Jogos Rio 2016 fui categórico em afirmar ao presidente que alguns dos nossos atletas não tiveram desempenho melhor por não conhecerem claramente as regras de arbitragem. Isto é meio incompreensível e inaceitável, mas é a dura realidade.”

Qual foi a mudança na regra imposta pela FIJ que mais o desagradou?

A mudança que foi feita quando o judô estava se descaracterizando. Essa regra me deixou muito chateado porque introduz exigências absurdas, como desclassificar o judoca que fizer um kaeshi-waza usando uma pegada na parte inferior do corpo. Deveria haver um estudo mais profundo sobre determinados golpes e técnicas, como o kata-guruma. Sendo bem feita, essa técnica é uma coisa linda de se ver, mas a proibiram – e ponto final. O maior paradoxo é que para obter a faixa preta e tornar-se sho-dan, o judoca tem de saber executar o kata-guruma com perfeição. As coisas não são discutidas, são impostas, e não existe diálogo.

Anualmente a FIJ muda regras, e todos têm de aplicá-las imediatamente. Não é cruel com a molecadinha do sub 11 e sub 13?

O pior é que eles mudam hoje e amanhã já está valendo, sem tempo para adaptação. Muita gente perde uma competição por desconhecer as alterações feitas. Mesmo com toda a evolução digital e a informação existentes hoje as pessoas necessitam de um tempo para adaptação.

Há 16 anos o judô brasileiro deu uma virada. Seria justo, hoje, falar que a atuação de Joaquim Mamede foi insignificante?

Não seria justo. Queiram ou não, Mamede foi responsável por projetar o judô brasileiro internacionalmente. Foi na era dele que se conseguiu a primeira medalha de ouro olímpica. Mamede foi um cara destrambelhado, mas teve sua importância por trazer o Paulo Wanderley para ser o técnico da equipe nacional e que depois levaria Rogério Sampaio a conquistar o segundo ouro, nos jogos de Barcelona.

Quais foram os três judocas mais técnicos que conheceu?

Lhofei Shiozawa, em primeiro, Takeshi Miura em segundo e Odair Borges.

E os melhores professores no tocante à técnica?

Massao Shinohara, Ryuzo Ogawa e Takeshi Nitsuma.

Quais foram os principais professores na propagação da modalidade?

Em São Paulo foi o Ryuzo Ogawa; na região Norte e Nordeste, o professor Lima, de Fortaleza; e no Rio de Janeiro os professores Rodolfo Hermanny e o George Mehdi.

Quais foram as principais escolas do judô nos últimos 30 anos?

Na minha época os maiores celeiros eram Shinohara, Nitsuma e Umakakeba, em São Paulo, e Gama Filho, no Rio de Janeiro.

Você vê renovação no judô brasileiro?

Com certeza. Ela só não é maior devido à teimosia de alguns professores e técnicos de não querer acompanhar a evolução no que se refere à arbitragem. Após os Jogos Rio 2016 fui categórico em afirmar ao nosso presidente que alguns dos nossos atletas não tiveram desempenho melhor por não conhecerem claramente as regras de arbitragem. Isto é meio incompreensível e inaceitável, mas é a dura realidade.

Quais técnicos da seleção brasileira fizeram um trabalho mais expressivo?

O técnico não faz nenhum campeão olímpico, e sim o professor. Um exemplo é o Aurélio Miguel: quem o fez campeão olímpico foi o professor Massao Shinohara, da mesma forma que o responsável pelo crescimento técnico do Rogério Sampaio foi o professor Paulo Duarte. Quando ambos chegaram à seleção olímpica já eram campeões. Esse não é o papel da CBJ e da comissão técnica. A entidade tem de fomentar o surgimento de novos talentos em todo o País, e a comissão técnica tem de proporcionar um treinamento que complemente o trabalho feito pelos milhares de professores espalhados pelo Brasil.

Qual das 22 medalhas olímpicas teve maior significado e importância para você?

A mais importante foi o primeiro de ouro, obtido por Aurélio Miguel. Mas no Rio de Janeiro, a que teve maior repercussão foi o bronze do Flávio Canto, que soube trabalhar sua conquista e se perpetuou na mídia até hoje.

Em sua avaliação qual é o maior entrave ao desenvolvimento da modalidade?

A falta de gestores estaduais mais atualizados e conscientes. Falta profissionalismo, e alguns dirigentes ainda enxergam e tratam o judô com amadorismo. É por isso que a CBJ é um grande exemplo de sucesso na gestão esportiva. Lá só ha profissionais capacitados para exercer suas funções. Não existe protecionismo e muito menos indicações políticas. Todos buscam fazer o melhor e com isso vemos grandes resultados.

Como chegou à presidência da Gestão Nacional de Arbitragem?

Comecei como diretor de arbitragem na federação carioca, na qual atuei por 15 anos. Depois fui indicado para a CBJ, na gestão do Mamede, e eu já tinha muitas ideias para colocar em prática. Comecei mudando a roupa e os hábitos dos árbitros e impus rigidez no cumprimento dos horários. Outra iniciativa importante a remuneração para os árbitros. Fui eu também que organizei e promovi o primeiro curso de arbitragem no Brasil, em 1985. Gostaria de ter feito mais, mas até o Mamede apregoava que “a arbitragem era o câncer do judô”. Já Paulo Wanderley faz questão de frisar sempre que um árbitro sobrevive sem a competição, mas a competição não existe sem o árbitro. Veja a diferença: Mamede foi apenas um presidente da CBJ, Paulo Wanderley é um dos maiores gestores do desporto brasileiro.

Quais foram os maiores gestores do judô brasileiro e por quê?

Os que tiveram melhor desenvoltura e souberam usar ferramentas como o marketing esportivo foram o Ney Wilson e o Francisco de Carvalho, em termos de federações estaduais. Mas quem fez a maior gestão de todos os tempos foi Paulo Wanderley. Para qualquer gestor ter êxito é necessário que ele crie uma excelente equipe, e esse foi o grande trunfo do Paulo em sua gestão.

Você preparou o Jéferson da Rocha Vieira para substituí-lo?

Sim, em primeiro lugar por ser do Rio de Janeiro, já que teria de trabalhar comigo ombro a ombro. O Jéferson é inteligente e sabe formatar certas coisas importantes no campo da gestão de arbitragem. Estou na CBJ há 16 anos e ele está comigo na entidade há cinco. Mas trabalhamos juntos desde 1985, além de tê-lo formado como árbitro. Hoje ele é FIJ A e professor kodansha 6º dan.

Qual é o segredo de, prestes a completar 89 anos, administrar vaidades e comandar um setor tão delicado?

É uma pergunta difícil de responder, porque não consigo calcular a minha importância neste contexto. Mas sei que tive uma contribuição na evolução da arbitragem do judô no Brasil.

Qual foi a sua maior alegria nos tatamis?

Ter atuado numa Olimpíada aqui em nossa casa, nos Jogos Rio 2016.

E a sua maior decepção?

Honestamente falando, não tive decepções nos tatamis. Só me decepciono com pessoas e, mais especificamente, com a vaidade extrema e até mesmo a futilidade de algumas delas.

Qual é segredo para esta trajetória de sucesso naquilo que faz?

É muito simples. Ser extremamente honesto consigo mesmo.

Qual é a pessoa que mais admirou nestes 65 anos nos tatamis?

Sem puxa-saquismo, afirmo sem pestanejar que foi o professor Paulo Wanderley Teixeira, porque ele reconhece meu valor e ignora minha deficiência pela idade; ou seja, maximiza minhas qualidades e virtudes e minimiza minhas limitações.

Há dirigentes estaduais que se perpetuam no poder. Isso é produtivo?

Sinceramente falando, acho prejudicial e perigoso no caso de dirigentes que não têm capacidade para ocupar o cargo. Mas se a pessoa é capaz e fomenta a modalidade, ela pode ficar eternamente no cargo.

Qual é a razão do seu vínculo e dedicação ao judô, por todos estes anos?

Amor e gratidão pelo o que o judô me ofereceu, e que nenhuma outra profissão me daria. Com toda a minha origem pobre, hoje sou um cara rico no que se refere a amigos. Rico de experiências, vivências, e rico por tudo que o judô me ofereceu socialmente falando. Não tenho nenhum diploma escolar porque nunca gostei de estudar. Mas sou um autodidata chato. Em meio a toda esta simplicidade, já fui considerado um dos mais bem vestidos no Rio de Janeiro, convivi com governadores, vice-presidentes, ministros, e todos me respeitavam pelo trabalho que desenvolvi no judô.

Qual é a proposta do livro que está prestes de lançar?

Meu livro mostra que o judô é um elemento necessário na sociedade atual e nos ensina a viver melhor. Por isso ele se chama Judô, um aprendizado para a vida. Até porque os ensinamentos básicos do judô e de seus movimentos se assemelham a todos os movimentos que temos de fazer em nossas profissões, mesmo sem ser judoca, além de esmiuçar as assertivas de Jigoro Kano, o fundador do judô. Entre elas, o ji-ta-kyo-ei (Princípio da Prosperidade e Benefícios Mútuo), minha preferida, para que a humanidade se entenda e melhore a forma de viver, tanto em família quanto no trabalho e no convívio social. Pretendo fazer palestras sobre o conteúdo deste livro.

Qual é o seu planejamento após a mudança no comando da CBJ?

Sair eu não quero, porque amo o judô e pretendo estar sempre no contexto dele. Mas não tenho nenhuma expectativa, em função de minha idade. Infelizmente vivemos num mundo preconceituoso e a idade pesa muito contra o ser humano. Sei que tenho capacidade para seguir adiante, mas meus quase 90 anos se tornam um impeditivo. Por exemplo, se fosse um ator poderia continuar atuando porque me adequaria a novos papéis, mas na arbitragem do judô há coisas como raciocínio rápido, inventividade. Eu vejo que a arbitragem ainda muda a cada dia, mas não chega a um lugar comum. O homem quer sempre aparecer e dizer que inventou alguma coisa, que mudou o judô, mas o judô possui fundamentos sólidos que serão mantidos ao longo dos anos, enquanto as lideranças tombarão diante do tempo ou dos erros cometidos.

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